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No chão e no ar - 23/01/2012




JB na fábrica: “telefone sem fio” em inglês com os trabalhadores chineses

Duas crises setoriais, entre as muitas que a economia brasileira atravessou nas últimas décadas, acabaram por levar para o sul da China uma numerosa comunidade de brasileiros com algumas improváveis características em comum: são quase todos gaúchos, técnicos em fabricação de calçados ou pilotos da aviação comercial, que migraram com suas famílias para as cidades de Dongguan e Shenzhen em busca de trabalho estável e perspectivas profissionais, difíceis de encontrar no Brasil em momentos do passado recente.

 

São duas comunidades nascidas de crises distintas: a da indústria de calçados do Rio Grande do Sul, nos anos 1990, provocada pela abertura comercial e pela competição do baratíssimo calçado chinês, e a da aviação comercial na década seguinte, que deu fim a empresas tradicionais, como a Vasp. A colônia maior, dos calçadistas, vive em Dongguan, um dos polos industriais da região em torno de Guangzhou — ou Cantão, como foi alcunhada no Ocidente — e Hong Kong. Foi aqui o berço da abertura econômica promovida pelo governo chinês a partir de 1978, que transformou a China no chão de fábrica do mundo. São cerca de 3 mil expatriados, segundo cálculos dos próprios moradores e estimativa da Embaixada do Brasil em Pequim, com a peculiaridade de virem quase todos da mesma região gaúcha — o Vale do Sinos, centro de produção de calçados femininos.

 

“Somos uma das comunidades de expatriados mais homogêneas de que tenho notícia”, observa Otávio Oliveira, gerente de operações da empresa norte-americana Camuto Group. Ele explica: os brasileiros de Dongguan não só dividem a profissão, mas vêm de cidades bastante próximas, especialmente Novo Hamburgo, Sapiranga e Campo Bom. Boa parte deles aprendeu a fazer sapatos no Senai de Novo Hamburgo. Já os pilotos e suas famílias, na vizinha Shenzhen, a cerca de 50 quilômetros de Dongguan, não chegam a uma centena. Trabalham todos na empresa aérea local, Shenzhen Airlines, ao lado de chineses e de outros expatriados. O chefe dos pilotos estrangeiros, por sinal, é um dos gaúchos, o comandante Lotário Kieling, que foi o primeiro brasileiro a chegar lá, em 2004, e abriu o caminho para o resto do grupo (leia mais sobre os pilotos na pág. 30).

 

Os dois grupos não têm muito contato, apesar da autoestrada de oito pistas, tinindo de nova, que liga as duas cidades. São ainda diferentes no grau de integração local: enquanto os pilotos e familias são muito poucos para ser notados pelos chineses de Shenzhen, em Dongguan a colônia gaúcha é tão visível que alguns vendedores, vez por outra, arriscam o português nos mercados da cidade. “Barato, barato”, dizem, ao tentar seduzir o potencial cliente ocidental com alguma barganha. Mas como a presença dos gaúchos chegou a ser tão forte? A história começou em meados dos anos 1990, quando aportou em Dongguan a indústria brasileira Paramont, de Campo Bom. A empresa transferiu parte de sua produção para a China depois de ter os negócios no Brasil ameaçados pela própria concorrência chinesa. Para ela, foi uma forma de se beneficiar das mesmas condições que impulsionavam a competitividade dos concorrentes: a mão de obra barata, a cadeia de fornecedores de acessórios consistente, políticas governamentais preferenciais e boa infraestrutura logística — as vizinhas Shenzhen e Guangzhou/Cantão são cidades portuárias.

 

Os brasileiros mostraram que tinham habilidade com os sapatos, e logo empresas rivais também estabelecidas na China, especialmente taiwanesas, também começaram a trazer profissionais do Vale do Sinos. O chamariz foram os bons contratos oferecidos, uma vez que o gigante asiático tinha carência de profissionais especializados na produção de calçados de qualidade mais alta. Muitos dos técnicos já se conheciam do Rio Grande do Sul. Um amigo sabia de um novo posto aberto, convidava outro a vir à China, e assim a comunidade foi tomando corpo. Para os gaúchos, que enfrentavam uma crise em casa, foi a chance de fazer um pé-de-meia. De um ponto de vista mais amplo, entretanto, essa é uma forma de internacionalização que deixa sequelas — as empresas e os profissionais que saem do Brasil não criam uma nova operação internacional, cujos resultados serão somados à produção doméstica, mas levam consigo empregos, tecnologia e recursos que eram, até então, empregados no país.

 

E o que fazem exatamente os brasileiros transplantados? Sua especialidade é acertar o compasso entre o desenho original e o produto final. O design dos calçados exportados pela China, em geral, vem dos Estados Unidos e da Europa. Os brasileiros se encarregam do desenvolvimento do produto, do controle de qualidade e da supervisão da produção, que é entregue a fábricas chinesas terceirizadas. Os técnicos gaúchos são os responsáveis, por exemplo, pela criação dos moldes para a produção de sapatos que estarão nas prateleiras do mundo inteiro, ostentando as marcas de seus criadores. Além do desenvolvimento inicial do produto, os expatriados do Vale do Sinos acompanham as linhas de produção para inspecionar e afinar o trabalho dos fabricantes. O que eles fazem melhor do que ninguém — e por isso estão lá — é esse trabalho especializado no “meio do campo” entre a criação artesanal e a manufatura em massa. Acrescente-se a isso o fato de serem especializados em sapatos femininos, um nicho em que os chineses não tinham expertise.

 

“Poucas companhias brasileiras seguiram os passos da pioneira Paramont”, diz Otávio Oliveira, que está há cinco anos na China, trabalhando na americana Camuto Group. Mais comum foi o caso de empresas estrangeiras que mantinham operações no Vale do Sinos migrarem parte de sua base produtiva para a China. A própria empresa em que ele trabalha é um exemplo. A Camuto hoje tem 20% da produção feita no Brasil e 80% na China. Mas 98% da produção é vendida nos Estados Unidos. Seguindo a regra da terceirização da manufatura, a Camuto não produz, ela mesma, um par sequer. Seus funcionários passam a maior parte do tempo em ateliês no prédio de seis andares da companhia em Dongguan, trabalhando em design, desenvolvimento e controle da qualidade. A produção física dos sapatos que levam a marca Vince Camuto é feita por 17 empresas chinesas, todas instaladas na cidade ou no entorno. Dos 600 funcionários da Camuto em Dongguan, 50 são brasileiros. “Apenas um terço veio do Brasil”, afirma Oliveira. “Outros dois terços já estavam aqui quando foram contratados.” Os brasileiros, diz Oliveira, custam três vezes mais que o empregado chinês. Mas a especialização e a qualidade do trabalho compensam o custo.

 

Os salários que eles recebem são mais altos do que no Brasil — cerca de 2 mil dólares para começar, além de passagens aéreas duas vezes por ano para o funcionário e o cônjuge. Mas as vantagens que levaram ao surgimento do polo de Dongguan começam a escassear. A própria Paramont, que foi pioneira na aventura chinesa da década de 1990, já dá passos diferentes, instalando unidades na cidade de Chengdu, capital da província de Sichuan, atingida pelo grande terremoto de 2008. A saída de Dongguan é estratégica: os salários na cidade estão mais altos por causa da escassez de mão de obra chinesa, e a produção acaba por ficar mais cara. Mas, apesar de a indústria começar a se movimentar rumo ao interior da China, Oliveira acredita que não é hora para pensar na próxima cidade em que irá viver. “Evidentemente, o setor calçadista, que exige mão de obra pouco qualificada, é um dos primeiros a sentir o aumento de custos, e pode se deslocar com facilidade”, diz Oliveira. “No entanto, não vejo nossa empresa saindo daqui em um período de cinco, dez anos.” Ele explica que a cadeia de suprimentos de componentes para calçados e a estrutura logística de Dongguan farão com que o setor ainda mantenha bases ali.

 

 Há trabalho para os calçadistas brasileiros na China e no Brasil, acredita Oliveira. Mas ele voltaria para o Brasil? É difícil deixar o país que adotou há cinco anos, responde. Casado e pai de um menino de 1 ano e dois meses, “feito e nascido na China”, as oportunidades são muitas por lá. Para ele, é um grande passo no currículo, argumenta. Para o filho, a chance de crescer em um ambiente multicultural, preservando o português em casa, aprendendo inglês na escola, e praticando o mandarim com os amigos. “Isso sem falar na segurança, algo de que minha família não abre mão”, conclui.

 

Segurança é a primeira vantagem apontada por outro gaúcho expatriado, o diretor de produtos do Grupo Camuto, João Batista Vieira, de Novo Hamburgo. Ele iniciou a temporada chinesa pouco depois da instalação da companhia em Dongguan. Na época, veio acompanhado apenas da mulher, Deti. Os filhos, Jean e Jader, vieram um ano depois. “Na nossa casa, fizemos o contrário, os pais é que saíram”, brinca Vieira, que há um ano e meio divide o tempo também com o Vita Bar, empreendimento noturno do qual é sócio. Para completar a agenda cheia, vez por outra JB, como é conhecido na comunidade, comanda as baquetas na bateria da banda A Passageira, cujo nome remete à constante troca de integrantes (a música que fazem pode ser descrita como rock gaúcho). Alguns ficam, como o filho dele, Jader, que faz o vocal. O outro filho de JB, Jean, engrossa a soma de gaúchos no setor calçadista. Atua numa empresa que trabalha para a Camuto, e em dois anos já aprendeu mandarim suficiente para se comunicar no idioma local — algo raro entre os brasileiros. A maioria não fala o mandarim e usa o inglês para se comunicar. “Tudo dá certo, mas é um verdadeiro telefone sem fio”, admite JB (leia mais sobre os expatriados e o idioma nesta página).

 

Mas nada é tão difícil que valha a pena reclamar. A vida anda tão boa na China que o casal até abre mão das duas passagens para o Brasil a que tem direito todos os anos. Usa apenas uma. No ano passado, um dos períodos de férias foi dedicado a uma viagem à Europa para celebrar os 25 anos de casados. A adaptação inicial pode ser difícil para alguns. Mas a maioria acaba gostando — basta conversar com os brasileiros da comunidade para constatar.

 

As cidades ajudam. A política de desenvolvimento implantada há décadas na região por Deng Xiaoping, o sucessor de Mao Zedong, garantiu não só a atração de investimentos, a implantação de indústrias e a consequente entrada de dinheiro, mas transformou a paisagem. Shenzhen era uma pacata vila de pescadores há 30 anos, e soma hoje mais de 14 milhões de habitantes. A cidade, na divisa com a antiga colônia britânica de Hong Kong, é hoje recortada por arranha-céus. Já Dongguan, que acolheu os calçadistas, tem um projeto urbano moderno. A maioria dos prédios tem até seis andares — apenas no distrito mais central, Dongcheng, há edifícios mais altos, a maior parte residenciais. Canteiros impecáveis contornam as largas avenidas e dão ares de uma cidade como Los Angeles, com um viés cosmopolita chinês. Além dos restaurantes locais, podem ser encontrados bares irlandeses, cantinas italianas, delícias tailandesas e, claro, churrascarias, bares e restaurantes brasileiros. E é por aí — pelo paladar — que, uma vez aclimatados em solo chinês, muitos expatriados começam a diversificar as atividades. Marino Arnecke, que deixou Campo Bom há mais de uma década como um dos pioneiros da Paramont, é um caso. Há um ano, ele é sócio do Boteco Brasil, paraíso da gastronomia popular brasileira de arrancar lágrimas de qualquer gaúcho expatriado. O cardápio contempla de aipim frito a especialidade regional xis (de cheeseburger), uma espécie de hambúrguer tamanho família comum em lanchonetes do Rio Grande do Sul. E com tele-entrega.

Outros vOos

 

Em 2004, o comandante Lotário Kieling, então na Vasp, pegou carona na crise aérea brasileira — que fecharia a empresa onde trabalhava, além de acelerar a quebra da Varig — e aceitou uma proposta da Shenzhen Airlines, companhia chinesa do sul do país. Quem chamou a atenção dele para a oportunidade foi um colega que já trabalhava na Ásia. Deu tão certo que, pouco tempo depois, Kieling já seria o chefe dos pilotos estrangeiros da empresa, agora integrada ao grupo da Air China, a terceira maior linha aérea do país. Com ele, chegaram outros brasileiros, num grupo inicial de 12 pilotos.

 

Com o trabalho no Brasil escasseando, a proposta chinesa era tentadora. Os brasileiros supriam a carência de profissionais treinados para atender ao explosivo crescimento da economia do país, que multiplicou a demanda por viagens aéreas. Mas há peculiaridades no arranjo da empresa com os brasileiros. Até hoje, eles voam sempre acompanhados de copiloto e tripulação chinesa. E a língua oficial de comunicação é o inglês. O mandarim pareceu uma barreira intransponível desde o início, e entre os brasileiros não há piloto que tenha encarado seu aprendizado.

 

 Atualmente, segundo Kieling, a Shenzhen Airlines tem cerca de 40 pilotos brasileiros. A maioria veio após ter a vaga fechada no Brasil, mas há quem tenha simplesmente optado por deixar o trabalho anterior e vir parar em terras chinesas. O ambiente internacional para a educação dos filhos, ao lado da segurança das cidades chinesas, são as primeiras vantagens elencadas pelos brasileiros na vida do outro lado do globo. Como para os calçadistas da vizinha Dongguan, a vida tranquila é chamariz tão forte quanto os salários. E como a economia brasileira tem se recuperado, eles também acreditam que o setor aéreo verde-amarelo poderia empregá-los outra vez. Mas voltariam? A maioria, não tão cedo, pelo menos.

 

“Aqui, a infraestrutura aeronáutica é excelente, o salário é melhor e a escala [calendário de voos] muito mais relaxada”, conta o piloto Sandro Poli, que está há quase três anos na Shenzhen Airlines, pronto para renovar o contrato por outros três. “E os aviões em que voamos são os mesmos do Brasil.” Outro piloto,  Umberto Dalpian, de Caxias do Sul, resume assim seus motivos para esticar a aventura oriental: “Não dá para viver aqui a vida toda, mas eu não volto antes de minha filha se formar em Hong Kong”.

 

 

Falando chinês

O idioma ainda é uma barreira para a integração maior dos expatriados brasileiros na China. Poucos chegam a tentar aprendê-lo, tal sua aparente dificuldade. E muitos dos que tentam terminam por desistir. “Uma vez tentei pedir um café em um copo de papel, durante o voo, e a comissária trouxe dez copos de café”, relembra o comandante Lotário Kieling, da Shenzhen Airlines. É que as palavras para papel, zhi, e para o número dez, shi, podem soar parecidas.

 

“Depois daquilo, desisti”, diverte-se o piloto. “Minha filha mais nova, no entanto, a Débora, está em Pequim, onde estuda mandarim”, conta o pai, feliz da vida. Esse é outro traço constante na comunidade — os filhos, nascidos ou criados na China, não se intimidam com o idioma, o que deixa os pais orgulhosos. Do lado chinês, entretanto, não parece haver muita cerimônia com o português, relata a especialista em mídias digitais Érica Benites Manssour, moradora de Dongguan há três anos, mas já de malas prontas para uma nova aventura em Xangai.

 

“Aipim xianzai pequeno, meiyou”, ela ouviu de um vendedor no mercado de hortifrutigranjeiros da cidade, quando tentou comprar a raiz tão presente no cardápio dos gaúchos. A tradução? Algo como “O aipim ainda está pequeno, não temos”. Com quase 15 anos de convivência com brasileiros em Dongguan, os chineses que têm mais contato com a comunidade incorporaram ao vocabulário  palavras como batata, cebola, mamão, chuchu e salsinha, conta Érica. Ninguém se espante se dentro em pouco arriscarem um “tri”, “tchê” ou “barbaridade”, diante da maioria absoluta de gaúchos na colônia local.

 

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