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O custo do isolamento - 28/06/2018

A produção industrial e o comércio internacional vêm atravessando verdadeira revolução nas últimas décadas, caracterizada por um processo de fragmentação transfronteiriça de sistemas produtivos.

Tome-se o exemplo do iPhone, o fenômeno de vendas da Apple, criado na Califórnia e objeto de desejo de consumidores do mundo inteiro.

Mais de 90% de suas centenas de componentes são produzidos fora dos Estados Unidos, em países como Alemanha, Cingapura, Coreia, Hong Hong e China.

Tamanha é a pulverização dos processos de produção e montagem, hoje em dia, que as estatísticas tradicionais de comércio exterior nem sequer conseguem capturar adequadamente as relações comerciais de determinados países com o resto do mundo.

O Brasil ficou relativamente à margem de tal processo de fragmentação produtiva, conforme se vê na preservação de cadeias produtivas locais com densidade acima do que seria imaginável para uma economia com suas características.

Enquanto comumente se imagina ser isso uma demonstração de resistência, cabe assinalar que tal densidade acarreta custos em termos de produtividade, competitividade e crescimento que deixam de ser usufruídos.

Para analisar melhor esta questão, dividi o argumento em três pontos, expostos a seguir.

Uma geografia econômica global em movimento A revolução recente do comércio internacional teve entre suas forças propulsoras a redução de barreiras tarifárias e não tarifárias, a incorporação de largo contingente de trabalhadores da Ásia e da Europa Central à economia de mercado mundial e um formidável arsenal de inovações tecnológicas.

Tudo isso combinado permitiu que as etapas de produção fossem modularizadas e distribuídas geograficamente em um universo crescente de atividades que redundaram na extensão da organização produtiva sob a forma de cadeias transfronteiriças de valor.

O comércio internacional cresceu mais rapidamente que o PIB mundial e, dentro do primeiro, também cresceram as vendas de produtos intermediários em relação aos finais.

A geografia da produção industrial alterou-se dramaticamente com o forte deslocamento dos segmentos intensivos em mão de obra não qualificada para fora das economias avançadas.

Ainda que o “esvaziamento” de tais empregos nas economias avançadas possa ser, em maior ou menor medida, explicado por vieses nas tendências do progresso tecnológico, não há como negar que foi acentuado por aquela transferência de partes das cadeias produtivas para economias intensivas em mão de obra não qualificada mais barata. No outro lado de tal translado, países de renda baixa vivenciaram processos rápidos de crescimento econômico a partir da transformação estrutural correspondente à migração de trabalhadores de atividades de subsistência para a indústria.

Mudanças acentuadas de preços relativos na economia global fizeram parte de tal processo. Enquanto o preço da mão de obra e dos produtos industriais caíam conforme o grau de intensidade no uso de tal fator de produção, subia o preço de produtos intensivos em recursos naturais, acompanhando a expansão de sua demanda proveniente das regiões de renda baixa em ascensão.

A lógica de cadeias de valor se estendeu também aos demais setores.

Produtores vêm optando por menos autossuficiência in house e por maior subcontratação de atividades que não lhes sejam essenciais, sendo esta uma das razões para a dilatação dos serviços na contabilidade dos PIBs nas últimas décadas.

Cadeias de commodities recorrem crescentemente a serviços sofisticados como insumos nas etapas a montante e a jusante.

Na agricultura, por exemplo, hoje em dia, utiliza-se cada vez mais serviços tanto na etapa da produção – tais como estudos de adequação de sementes a solos, previsões meteorológicas, cálculos de otimização de safras e colheitas etc. – como na pós-produção – transportes adequados, redes de distribuição e branding.

No caso de minérios, metais e fósseis combustíveis, por seu turno, o conteúdo científico e de serviços de terceiros incorporado a partir da prospecção até seu destino final vem só se elevando.

O conteúdo de serviços embarcados nos produtos industriais também se elevou. Adicionalmente, as inovações tecnológicas também ampliaram a comerciabilidade de vários serviços, conforme expresso no crescimento de seu comércio internacional.

Oportunidades e desafios na divisão industrial do trabalho estão reconfigurados nesse novo mundo de cadeias transfronteiriças de valor.

Para economias de baixa renda, pode-se aduzir ter-se tornado relativamente mais fácil — especialmente no caso das pequenas — aumentar sua produção industrial local, já que inserir-se via segmentos intensivos em mão de obra em cadeias existentes lhes permite contornar limites de escala e sofisticação de seus mercados locais.

Por outro lado, tal inserção é volátil, podendo ser facilmente desfeita e deslocada diante de qualquer sinal adverso.

Trata-se, portanto, tão somente de janelas de oportunidade para a acumulação local de capacidades e um salto adiante.

Para economias de renda média e alta, por seu turno, a competitividade naqueles segmentos definitivamente tornou-se mais árdua. Cabe notar, também, que certas trajetórias tecnológicas atualmente em fase inicial — por exemplo, a impressão em 3D — poderão substituir mão de obra não qualificada por qualificada em ampla faixa de segmentos das cadeias existentes, revertendo, em parte, a dinâmica espacial acima descrita. No que diz respeito a economias de renda média, o efeito é ambivalente.

Por um lado, benefícios em termos de spillovers tecnológicos – ou seja, o aprendizado mediante o contato e o manejo de tecnologias já desenvolvidas — com origem em economias avançadas, maior produtividade e acesso a mercados mais amplos são facilitados em faixas intermediárias de sofisticação de cadeias de valor existentes.

Por outro, a consolidação destas estabelece fortes desafios competitivos no que diz respeito à aquisição de posições em seus núcleos.

Caso seja essa a ambição em ramos maduros e consolidados, criar novas cadeias e contestar as já estabelecidas constitui a única alternativa para economias de renda média.

Os números não contam mais toda a história As estatísticas de exportações e importações não servem mais como meio de aferir como o comércio exterior de um país afeta a alocação de seus fatores de produção.

Com a fragmentação de sistemas produtivos e o vai e vem de produtos em estágios intermediários por fronteiras, não se pode ignorar sua múltipla contagem, quer no próprio ramo ou em outros em que sirvam como insumos.

Apenas recentemente dados sobre o valor agregado exportado por um país em cada setor começaram a ficar disponíveis, graças a uma iniciativa conjunta da Organização Mundial de Comércio (OMC) e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual se apresentam as exportações brutas subtraídas das importações no mesmo ramo e de outras linhas da matriz de insumo-produto. Os resultados se revelam frequentemente bem diferentes daqueles visualizados com as estatísticas brutas de exportações e importações.

Por exemplo, a base de dados do comércio de valor adicionado da OMC/OCDE desvela o volume de serviços no comércio internacional como muito maior, quando seu conteúdo embarcado em outros ramos é levado em conta, do que os 25% que lhes são atribuídos nas estatísticas brutas.

Correspondem a mais de 50% das exportações totais em países como EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Itália e, talvez surpreendentemente, quase um terço na China. Na verdade, serviços domésticos e importados aparecem incorporados nos diversos ramos da indústria de transformação, na mineração e na agricultura.

Segue-se que a qualidade dos serviços — domésticos ou importados — disponíveis para a indústria de um país afeta em muito a competitividade desta.

A nosso juízo, trata-se de um aspecto de política de desenvolvimento produtivo raramente lembrado no Brasil.

As estatísticas de comércio de valor adicionado também permitem ver como o Brasil mantém um grau de densidade em suas cadeias de produção industrial doméstica acima do que se deveria esperar a partir de seu nível médio de renda e desenvolvimento.

A economia brasileira apresenta níveis de valor agregado em relação ao total das exportações acima daqueles em outros países comparáveis.

O peso das commodities explica, em parte, por que o índice é alto nas exportações totais. Contudo, estudo recente feito pelo Banco Mundial mostra que tal índice é também elevado na maioria dos ramos manufatureiros.

O Brasil tem ficado à margem do processo de fragmentação transfronteiriça da produção. As exceções são poucas, como no caso da Embraer, que opera no centro de sua própria cadeia global de valor.

A rede regional automobilística do Mercosul também parece fugir à regra, mas se trata, na verdade, de extensão de uma cadeia com baixo grau de integração com o resto do mundo. Os elevados coeficientes de valor agregado sobre as exportações na indústria expressam, a nosso juízo, graus de adensamento produtivo local acima do que seria o caso se a economia fosse aberta.

Dito de outro modo, dado o estágio médio de renda por habitante e de sofisticação tecnológica do Brasil, esperar-se-ia maior grau de utilização de insumos e equipamentos importados melhores e mais sofisticados na produção local do que, de fato, acontece.

Os custos de oportunidade das cadeias de produção locais Distâncias geográficas em relação ao resto do mundo — diminuídas, porém não inteiramente anuladas pelas revoluções nos transportes e nas comunicações — explicam, em parte, o adensamento brasileiro maior que o que se esperaria para uma economia com os níveis médios de renda e de sofisticação tecnológica que lhe são característicos.

Afinal, em vários ramos, as cadeias transfronteiriças de produção são regionais e com foco em mercados dinâmicos de alta renda (Ásia, Europa e América do Norte). Contudo, o desvio brasileiro em relação à densidade que se imaginaria também reflete políticas comerciais e de conteúdo nacional, cujo uso tem-se mantido mais extensivo que na maioria de seus pares — inclusive a China.

Da mesma forma, condições precárias de logística e custos de transação no comércio por fronteiras particularmente elevados no Brasil, incompatíveis com a lógica de cadeias transfronteiriças de valor, explicam, em parte, o superadensamento doméstico.

A supressão desses fatores reduziria o desvio entre a densidade atual e a que prevaleceria em condições de plena abertura, com o correspondente fechamento de segmentos menos competitivos nas cadeias e sua substituição por importações.

Por outro lado, as atividades remanescentes seriam mais competitivas, assim como os produtos finais das cadeias teriam custos menores e/ ou qualidade superior.

Trata-se aqui dos ganhos estáticos previstos pela tradicional teoria do comércio.

No horizonte de tempo mais longo, seria possível observar as implicações dinâmicas do ajustamento na densidade das cadeias, com ganhos em termos de aprendizado tecnológico, aumento de produtividade e de competitividade.

Cabe, portanto, notar que tais ganhos seriam tão maiores quanto maiores fossem os spillovers tecnológicos e a extensão dos mercados que estejam sendo bloqueados pela falta de integração a cadeias produtivas, em relação ao cenário de manutenção do status quo. Um conjunto de fatores nos leva a concluir ser esse o caso A dinâmica tecnológica e de redução de custos na economia global tem sido significativa, tornando crescente o custo de oportunidade local decorrente da clivagem entre a densidade atual e a que prevaleceria num contexto de abertura.

A manifestação disso está nas dificuldades crescentes para a ereção de barreiras comerciais suficientes — conforme se vê no ascendente coeficiente de importações da
China pelo Mercosul.

Investidores privados, por seu turno, tendem a não apostar nem investir em linhas de produção que, a seu ver, só conseguiriam sobreviver na hipótese de proteção permanente

Numa economia que tende a se defrontar com escassez de trabalho — e uma vez suprimidos os fatores que incentivam o adensamento excessivo das cadeias internas de produção —, as cestas de consumo poderiam se ampliar sem exigir salários conflitantes com a rentabilidade das atividades produtivas remanescentes, posto que seria maior a disponibilidade local de bens de consumo e equipamentos mais baratos.

Tal benefício valeria, inclusive, para as atividades associadas à riqueza natural brasileira — agronegócios, exploração sustentada dos recursos florestais, minérios — que se constituem nos veios com as melhores chances para a criação de cadeias globais de valor com núcleo no país.

Afinal, como observamos antes, tais setores hoje em dia trazem amplas oportunidades para o desenvolvimento de outras atividades intensivas em ciência, tecnologia e mão de obra qualificada.

Naturalmente, o suporte de políticas públicas continuaria fundamental. Contudo, assumiria um caráter mais horizontal, deixando de predeterminar segmentos produtivos e empresas em particular como seus beneficiários.

Tais políticas não seriam mais voltadas a sustentar a densidade das cadeias de produção como um fim em si mesma; ao revés, teriam como objetivo central promover e sustentar a competitividade do conjunto da economia, levando necessariamente em conta suas condições de inserção no cenário global.


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