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Trabalho de Hércules - 28/06/2018
A estratégia dos países ricos é clara: ditar as novas regras do comércio

               A eleição de Roberto Azevêdo para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC) representa um grande sucesso da diplomacia dos países emergentes, em especial o Brasil. Significa, também, um enorme desafio para o novo articulador do sistema multilateral de regras para o comércio. Quebrando o acordo tácito de colocar representantes de países desenvolvidos nos postos-chaves das organizações econômicas, na medida em que crescia o papel das economias emergentes, foi se formando a opinião de que estaria na hora de um representante da América Latina ou da África assumir o cargo.


               A eleição de um brasileiro tem importantes consequências. Coloca na mão dos emergentes, principalmente dos Brics, uma enorme responsabilidade – a de formar uma forte coalisão que defenda as demandas dos países em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, atraia os países desenvolvidos, cada vez mais desinteressados pelo sistema multilateral do comércio, desde que o núcleo central da OMC, formado pelos Estados Unidos e pela União Europeia, decidiu dar preferência ao regionalismo.


               A OMC é a responsável pela negociação e supervisão das regras do comércio internacional. No decorrer das suas sete décadas de história, construiu um sistema sofisticado de princípios, regras e instrumentos que têm como objetivo não só a liberalização do comércio como o desenvolvimento econômico de seus membros. O marco mais representativo é o de oferecer um "tribunal" para solucionar os conflitos do comércio, único dentre as organizações econômicas internacionais. Com a complexidade do comércio internacional do mundo moderno, as regras negociadas na OMC ficaram defasadas. Questões novas, como a inter-relação do comércio com investimentos, concorrência, meio ambiente, energia e câmbio exigem cada vez mais a adequação das regras antigas e a negociação de novas regras.


               O novo diretor-geral precisará ser extremamente hábil e imaginativo para construir consenso em torno do futuro da OMC. Afinal, o que querem seus membros da Conferência Ministerial de Bali? Enterrar a rodada de Doha iniciada em 2001, fechar alguns pontos e dar o trabalho por encerrado, ou revigorar seu mandato e colocar mãos à obra? O grande problema é que a Rodada foi iniciada em um contexto diferente. O mundo em que seu mandato foi negociado mudou substancialmente.


               Doze anos depois, o comércio internacional tem de dar respostas a quatro grandes e novos condicionantes. O primeiro é a multiplicação de acordos preferencias de comércio, sejam regionais ou bilaterais, que vêm criando um sistema paralelo de regras de comércio fora de controle da OMC. São regras que avançam o quadro normativo para temas já negociados (serviços e propriedade intelectual) ou avançam em questões novas para a OMC (investimento, concorrência, meio ambiente e padrões trabalhistas). Nesse contexto, o ponto mais controverso é a estratégia dos Estados Unidos de matar a Rodada de Doha, uma vez que não conseguiu arrancar dos países emergentes maior acesso a mercados. Mais ainda, os Estados Unidos resolveram isolar os Brics e outros países emergentes e partiram para a criação de dois mega-acordos comerciais: o TPP (Parceria do Pacífico) e TTIP (Parceria Transatlântica). O primeiro tem por objetivo disputar a influência da China na região do Sudeste da Ásia, bem como o comércio regional em franco crescimento. O TTIP é mais ameaçador. Tem por objetivo a coordenação entre EUA e União Europeia para criar um novo sistema de regras que comandem o comércio internacional do presente século. As áreas prioritárias serão: serviços, propriedade intelectual, subsídios, medidas sanitárias e normas técnicas.


               O segundo condicionante é o fortalecimento das cadeias globais de valor, coordenadas pelas transnacionais sem fronteiras, que buscam sempre maior competitividade e consideram as regras tradicionais da OMC, baseadas em imposição de tarifas, medidas anti-dumping e regras de origem, como fontes de custos e barreiras ao comércio. Ou seja, querem uma nova OMC, centrada em temas de comércio como investimentos, concorrência, serviços e propriedade intelectual e padrões climáticos (privados). A globalização é um fenômeno irreversível. Acontece que tais regras criariam uma OMC centrada nas expectativas dos países desenvolvidos, mas que se tornaria desbalanceada por só defender seus interesses. As transnacionais querem substituir a solução de conflitos por mecanismos de arbitragem, por serem mais rápidos que os longos processos de solução de controvérsias da OMC. Com isso, perde-se toda a construção de interpretação e jurisprudência da OMC.


               O terceiro condicionante é a questão dos impactos do câmbio nos instrumentos de comércio. Uma verificação atenta do cenário internacional constatará que a moeda da maioria dos países exportadores está desvalorizada e a de parte dos países com problemas está valorizada. Resultado: o instrumento de tarifas acaba sendo anulado para os valorizados (Brasil e europeus mediterrânicos) enquanto os desvalorizados (EUA, México, China e europeus nórdicos) oferecem subsídios para suas exportações. Outros instrumentos importantes contra práticas ilegais, como medidas anti-dumping e antissubsídios, são erodidos diante da magnitude dos desalinhamentos cambiais atuais. Insistir em que o assunto é do FMI é a estratégia dos que se beneficiam com a situação atual. O FMI não é a OMC e não tem dentes (tribunal) como a OMC. Seus membros nunca julgaram e jamais julgarão nenhum dos seus integrantes como manipuladores de câmbio. A solução da OMC não deve depender do FMI para determinar se um país é manipulador ou não. Bastaria verificar se um país, via mecanismo de câmbio, não estaria frustrando os objetivos da OMC, desvirtuando suas regras. Se tal prática fosse constatada, seria permitida a neutralização dos desalinhamentos cambiais que frustrassem tais objetivos por meio de medidas tipo antissubsídios.


               O quarto condicionante é dar resposta à demanda dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos de que comércio não traz só vantagens para os outros países. Até hoje, a única ação da OMC tem sido por meio do tratamento especial e diferenciado, que nada mais significa que prazos mais longos e metas menos ambiciosas para a implementação das regras estabelecidas. Algumas iniciativas foram aprovadas, como o comércio livre de tarifas e cotas para países menos desenvolvidos e a de recursos para incrementar a infraestrutura para o comércio, apoiada pelos desenvolvidos. Mas, claramente, tais iniciativas são menores diante do brutal abismo que representa o comércio no desenvolvimento dos diferentes países da Organização. A esse desafio, a OMC tem dado fracas respostas.


               No contexto atual, a estratégia dos Estados Unidos é clara: enfraquecer a OMC e, junto com a União Europeia, controlar a elaboração das novas regras de comércio do século atual. O que não está claro é como americanos e europeus, com essa estratégia, vão enfrentar a China – uma economia híbrida que, com imensas reservas, empresas estatais em todos os setores, financiamentos sem limites e câmbio desvalorizado, consegue, de forma muito eficiente, burlar todas as regras da OMC.


               Diante de tais desafios, Roberto Azevêdo terá de usar todas as suas habilidades para não só trazer de volta para as mesas de negociação os 159 membros da Organização, mas também arrancar um acordo viável até o fim de 2013, que assegure o futuro da OMC. Não consegui-lo representará um sério golpe contra todo o sistema de regras construído durante sete décadas, com a fragmentação do sistema e o inerente conflito de normas que os acordos preferenciais estão criando. Não é a Rodada que está em causa, mas a relevância do sistema multilateral de comércio com sua tradição de singularidade e eficácia dentre as organizações internacionais.


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