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A internacionalização controvertida - 28/06/2018
Calçadistas brasileiros em fábrica chinesa

Desde que anunciou publicamente que passaria a fabricar sapatos na Índia, o diretor-presidente da Vulcabras, Milton Cardoso, tornou-se figura criticada em seu estado, o Rio Grande do Sul. Foi apontado como “traidor” e chamado, nos jornais locais, de irresponsável pelo governador, Tarso Genro. A crítica foi replicada nos blogs de economia e política e encontrou eco em jornais da Bahia, onde o grupo mantém parte de sua linha de produção. Num efeito bola de neve, a repercussão negativa teve reflexos – ruins – no desempenho das ações do grupo na bolsa, gerando descontentamento entre os acionistas e,  consequentemente, mais pressão. “Sirvo a dois senhores”, lamentou-se o empresário, segundo interlocutores, antes de se isolar atrás de uma blindagem estratégica. Sua assessoria confirma a operação na Índia, sem dar detalhes sobre o modelo de negócio, e Cardoso não se pronuncia mais a respeito.


Nem mesmo como presidente da Abicalçados, associação que representa as indústrias do setor. A decisão do grupo – de investir na transferência da produção para regiões no mundo com menores custos – é uma estratégia que vem se tornando mais e mais comum entre as indústrias de manufaturados brasileiras. Elas se veem pressionadas pela concorrência – tida como desleal – dos produtos importados, em especial dos chineses, que chegam aqui baratinho, baratinho. A forte reação enfrentada por Cardoso é resultado, sobretudo, da perda de postos de trabalho no parque industrial brasileiro provocada pela transferência da  produção para outros países.


Antes de abrir a fábrica na Índia, a Vulcabras, proprietária das marcas Olympikus, Reebok e Azaleia,  fechou seis unidades na Bahia e a linha de produção de Parobé, no Rio Grande do Sul, berço da Azaleia. O total de demitidos assumidos pelo grupo é de pouco menos de 8,9 mil, mas Cardoso, quando ainda  atendia a imprensa, negou que os cortes tenham sido efeito da migração da produção. Afirma que ocorreram por conta dos prejuízos registrados pelo grupo com a perda de competitividade, que foram de 316 milhões de reais em 2011 (conforme relatório anual). O número de funcionários planejados para a  nova linha indiana é de 10 mil.


O episódio da Vulcabras demonstra que a marcha rumo ao exterior seguida pelas empresas brasileiras tem, também, um aspecto controvertido. Em alguns casos, parece repetir o que aconteceu nas últimas décadas no mundo ocidental rico, cujas indústrias, em busca de custos mais competitivos e economias menos regulamentadas, passaram a transferir a produção final para países emergentes, como o México, a China e outras nações asiáticas. Os franceses batizaram esse fenômeno de délocalisation — significando o deslocamento da produção física de bens para terceiros países. A ideia por trás do conceito era de que   americanos, europeus e japoneses fariam apenas as etapas mais “nobres” do ciclo de produção – a   pesquisa, o desenvolvimento, o design, o marketing e as finanças. A humilde manufatura, com suas  tarefas repetitivas e pouco sofisticadas, poderia ficar a cargo dos países recentemente industrializados,   capazes de oferecer mão de obra muito mais barata e atraentes incentivos fiscais aos investidores  estrangeiros. Mas a crise bancária e financeira de 2008 expôs os riscos que correm as economias  avançadas que deixam de oferecer empregos industriais a seus trabalhadores. Quando as finanças e os serviços implodem, não há mais a rede de segurança da indústria tradicional para garantir empregos de qualificação média.


Discute-se, ultimamente, nos Estados Unidos, por que a aparente retomada da economia americana depois da crise não parece capaz de criar postos de trabalho ( já foi apelidada de jobless recovery, a recuperação sem empregos). Enquanto isso, setores da economia brasileira dão passos largos no caminho da délocalisation, e líderes empresariais atribuem a desequilíbrios estruturais da economia brasileira a culpa por esse processo. “A internacionalização é saudável quando existem condições isonômicas entre as que produzem aqui e seus concorrentes externos, para que possam disputar mercado em condições de igualdade, e não sejam ‘obrigadas’ a ir embora para se manter vivas”, afirma Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “O que acontece hoje no Brasil não é uma  internacionalização salutar das empresas, porque não há condições isonômicas de concorrência.”


Para o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da Faculdade de Economia da PUC-São Paulo, a resposta dos empresários à ameaça dos importados de baixíssimo custo faz sentido do ponto de vista dos setores atingidos pela competição asiática, mas pode ter consequências negativas mais amplas. “A empresa tem de ser pragmática, e nem sempre a melhor solução para ela é o melhor para o país”, diz ele. Para o professor, movimentos desse tipo, além do aumento do desemprego, trazem consigo o risco de queda na renda interna e na arrecadação de impostos no país. Para as empresas que desistem de produzir no Brasil e “exportam” suas linhas de produção – em geral de setores tradicionais e maduros, como têxteis e calçados – trata-se de uma questão de sobrevivência. O advogado Durval de Noronha Goyos Júnior, especializado em Direito Internacional, tem um nome para o conjunto de obstáculos que a indústria brasileira enfrenta e que resulta na perda de sua competitividade internacional.


É “a tríade demoníaca: câmbio defasado, juros altos e tributos em excesso”. Noronha abriu uma filial de seu escritório na China há mais de 12 anos e testemunhou alguns episódios de transferência da produção do Brasil para lá – segundo ele, um processo que costuma acontecer em três etapas. No início, ele conta,  os empresários brasileiros buscavam no Oriente fornecedores mais em conta para suas linhas de produção  no Brasil, o que acabou por ter impacto sobre os estágios iniciais das cadeias produtivas.


Na indústria têxtil e de confecções, por exemplo, esse movimento terminou por machucar o parque  industrial de tecidos e aviamentos que supria os fabricantes locais – hoje, um terço de tudo o que é consumido no Brasil nesse setor vem de fora, segundo o diretor-superintendente da Associação Brasileira da Indústria de Tecidos e Confecções (Abit), Fernando Pimentel. “Se nada for feito para recuperar a   competitividade das nossas confecções, em três ou quatro anos vai acontecer o mesmo também com elas,” ele alerta. Os dados do setor mostram que, em 2011, a produção doméstica de produtos têxteis caiu 15% e a de confecção, 4%, mas o varejo cresceu 4% e as importações, 40%. Pimentel diz que este cenário  provocou o fechamento de 13 mil postos de trabalho. “Em 2010, tínhamos gerado 63 mil empregos diretos. Se somarmos os postos não gerados aos fechados e também os empregos indiretos e dependentes, o impacto pode atingir 280 mil pessoas”, constata Pimentel.


Na segunda onda, de acordo com Noronha, sempre em busca de  custos baixos, os empresários passaram a montar representações no exterior para melhorar suas transações com os fornecedores. Alguns elos da cadeia de produção também começaram a ser transferidos para o exterior. No caso dos calçados, esse movimento levou o Brasil a exportar mão de obra especializada no curtimento e acabamento de couro, e os técnicos especializados que fazem o desenvolvimento do produto – a ponte entre o designer que cria o  calçado e os operários que o fabricam. “Na província de Guangdong, que produz basicamente para os  Estados Unidos e a Europa, tem muito brasileiro trabalhando”, conta o diretor executivo da Abicalçados, Heitor Klein – o que terminou por contribuir para o Brasil perder parte do seu mercado de exportação,  agora atendido a partir da China. “Os brasileiros levaram a tecnologia que faltava aos sapateiros  chineses”, explica Noronha.


Mais recentemente, na terceira etapa, as empresas brasileiras passaram a fazer joint ventures, parcerias e a implantar linhas de produção na China, principalmente nos setores de autopeças e de cerâmica. “Os empresários vão porque lá é tudo mais fácil, barato e eficiente”, argumenta o advogado. Para explicar o porquê, ele disseca a anatomia do que se convencionou chamar de “custo Brasil”, em comparação com os números chineses. Enquanto os juros no Brasil, mesmo em queda, ainda estão entre os mais elevados do mundo, na China são de 0,5%, exemplifica Noronha. Os industriais chineses pagam apenas oito tarifas de impostos, que acumulados têm um peso equivalente a 24% do PIB chinês; no Brasil, a carga tributária gira em torno dos 35% do PIB e o peso dos impostos no preço dos produtos passa de 40%.


A indústria brasileira ainda padece com a infraestrutura ineficiente, que faz aumentar os gastos com logística, que já representam 4,4% dos preços dos produtos segundo estudos da Fiesp. “O somatório   desses fatores já oferece elementos suficientes para motivar os empresários a transferir sua produção para solo chinês”, diz o advogado. O resultado é que pelo menos uma parte daqueles 40% a mais de produtos importados no varejo têxtil chega aos consumidores brasileiros pelas mãos de fabricantes locais, que se aliam ao inimigo para se proteger dele. A catarinense Hering se tornou case de boa gestão e conseguiu sair de uma situação pré-falimentar aderindo ao varejo, estratégia que só pôde ser implantada com base na importação de produtos chineses. Apesar de identificar claramente, para o consumidor, quais são as peças importadas da China nas suas araras e de tornar claro em seu relatório que a importação foi uma estratégia para  reduzir custos e, ao mesmo tempo, atender ao rápido crescimento nas vendas, a Hering evita falar sobre o assunto publicamente.


O destino dessas empresas, no entanto, não é apenas a China. Para alguns fabricantes, o país asiático é inviável em virtude do que o mercado chama de “dimensões chinesas”. No ano passado, por exemplo, as  calçadistas gaúchas Paquetá e Schmidt transferiram linhas de produção para a América Central. A Schmidt levou toda a sua produção de 4,5 milhões de calçados para a Nicarágua, e a Paquetá, parte da sua  produção anual de 10 milhões de pares para a República Dominicana, que têm acordos de livre comércio  com os Estados Unidos, o maior mercado para o sapato brasileiro. “Algumas empresas até tentaram ir para a China, mas as quantidades mínimas exigidas são imensas”, conta Klein, da Abicalça- Ministério do Trabalho, em 2011 o setor perdeu 11.188 postos de trabalho.


A barreira das “dimensões chinesas” também impediu, até agora, a adesão maior das confecções  brasileiras à terceirização na China. “Só quem tem varejo próprio consegue”, explica Ronald Moris Masijah, proprietário da Darling, uma confecção de lingerie que tentou deslocar a fabricação das suas peças para a região de Guangzhou, a segunda maior cidade chinesa, mais conhecida no Ocidente por Cantão. “Eu e meu sócio visitamos pelo menos 12 fábricas entre o fim de 2008 e início de 2009. Tem de tudo, desde roupa para ser vendida por camelôs, bem baratas, até peças com qualidade de grifes sofisticadas”, explica. Os dois sócios chegaram a selecionar duas fábricas, mandaram as modelagens daqui, receberam a contraprova e até aprovaram e cotaram as peças de uma delas. “Com o preço que conseguimos em uma fábrica chinesa com qualidade similar à nossa, depois de pagar todas as taxas e o frete, cada peça poderia ser vendida aqui a valores 40% menores”, conta.


O problema foi a quantidade mínima da encomenda, de um contêiner por coleção. “Estamos falando de 100 mil peças. Se furar a grade ficamos no prejuízo”, explica Ronald (grade é a quantidade de peças em determinada cor e tamanho, estimada pelo marketing e que, na fabricação brasileira, vai sendo ajustada de acordo com as primeiras vendas). “Começamos cortando metade do necessário e esperamos os primeiros resultados para fazer os ajustes. Na China, o ajuste na linha levaria seis meses”, explica.


Já para a trading capixaba Bracomex, as “dimensões chinesas” ajudaram no seu plano de criar uma marca de cerâmica no Brasil, a Elite. A empresa, antes dedicada exclusivamente ao comércio, decidiu produzir cerâmica na China para atender o emergente mercado de consumo da classe C. O objetivo era oferecer a  esses novos consumidores peças sofisticadas até então restritas ao público classe A. “Como esses consumidores não estavam sendo atendidos pela indústria local, nossas importações de porcelanato  passaram a crescer rapidamente”, conta o diretor da Bracomex, Frederico Vassen. “Foi aí que criamos uma linha que tivesse o padrão estético que agrada ao nosso consumidor, com preços chineses.”


No primeiro ano, 2006, Vassen trouxe três contêineres com cerca de 4 mil metros quadrados de  porcelanato polido, um produto de ponta no mercado dos pisos cerâmicos, fabricado na China com design criado no Brasil. No ano passado, importou 54 mil metros quadrados do revestimento de fábricas chinesas da região de Foshan, que tiraram fornadas exclusivas para a marca, vendidas aqui por 50 reais o metro quadrado. “Este ano vamos facilmente atingir 600 contêineres, ou 800 mil metros quadrados”, prevê Vassen, que acredita poder atender a classe C com este preço. “Hoje se encontra porcelanato a 15 reais o metro quadrado no varejo”, conta o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Cerâmicas


para Revestimentos (Anfacer), Antonio Carlos Kieling. As peças similares mais baratas produzidas em  solo brasileiro não custam menos que 70 reais o metro quadrado (porcelanato polido de grandes  formatos). “Isso acaba comprimindo a cadeia como um todo e decretando a morte da indústria nacional, que deixa de investir no desenvolvimento de um produto que representa o futuro do setor”, alerta Kieling. Neste setor, a transferência provocou o fechamento de cerca de 5 mil postos de trabalho nos últimos dois anos, segundo dados da Anfacer.


Estudo da Fiesp mostra que, para uma alta de 1,2% no consumo aparente dos brasileiros registrado em 2011, a indústria brasileira contribuiu com o equivalente a apenas 0,55 ponto percentual. O restante (que corresponde a 0,65 ponto) foi suprido pelos importados, boa parte deles da China. “A internacionalização que faz bem ao Brasil e às suas empresas é aquela que não substitui linhas de produção”, diz o economista Corrêa de Lacerda.  Perda de postos de trabalho não é o único prejuízo. Se nos calçados o Brasil perdeu vendas no mercado externo, no caso das cerâmicas, um dos riscos é o da sequela tecnológica. Para reduzir os preços e ganhar competitividade, as grandes cerâmicas brasileiras terceirizaram boa parte de sua produção dos porcelanatos, entregando-a a fábricas chinesas.


Embora seja um nicho que representa menos de 5% da produção total do setor – em torno de 845 milhões de metros quadrados em 2011 – é o produto de maior valor agregado. O desconforto com essa situação reuniu, no início de abril, em São Paulo, empresários e operários numa improvável passeata em favor do emprego. Segundo dados das associações de empresas de três dos setores mais afetados pela concorrência chinesa – calçados, têxteis e cerâmica –, a transferência de produção fechou, só nos últimos dois anos,  quase 30 mil postos de trabalho no país.


Para Corrêa de Lacerda, é preciso haver uma política industrial adequada. “Ela deve criar condições que impeçam a transferência pura e simples da produção, por meio de medidas macroeconômicas que  garantam a nossa competitividade”, diz o economista. Essa estratégia poderia abranger medidas pontuais, como a criação de restrições a produtos importados, desde que associadas ao enfrentamento de problemas tão antigos quanto graves, como a reforma tributária e o controle dos gastos públicos. As empresas que  resolvem produzir fora para suprir o mercado interno tampouco devem esquecer que a decisão comporta  riscos para elas, como o do aumento do protecionismo. “O risco para as empresas é justamente o governo brasileiro colocar barreiras como impostos, cotas e limitações nas compras governamentais, privilegiando a produção local”, afirma Lacerda.


Isso já está ocorrendo. As cerâmicas e os calçados pagam a taxa máxima de importação, de 35%; e os sapatos vindos da China ainda pagam uma tarifa anti-dumping, estipulada em 13,5 dólares por unidade, medida que desagradou a muitos empresários do setor, segundo fontes do mercado. Em nenhum dos dois setores, no entanto, estas barreiras desencorajaram a importação. “O aumento da alíquota de importação, de 14% para 35%, ocorreu em outubro do ano passado e nós repassamos ao varejo sem perda nas vendas”, garante Vassen, da Elite — considerado um estranho no ninho, na visão dos empresários tradicionais do setor. No caso dos sapatos, segundo dados da Abicalçados, os importadores passaram a trazer sapatos desmontados, que entram como cabedais – a parte de cima das peças, sem as solas – para não pagar a tarifa, que incide apenas sobre calçados prontos. “Eles também fazem uma triangulação com o Vietnã”, conta Klein. “As importações no setor aumentaram 45%.”


Os empresários estão pedindo a extensão da tarifa anti-dumping para os cabedais vindos da China e para sapatos prontos do Vietnã e Indonésia, prometida pelo governo para o começo do segundo semestre. Ao que parece, o mercado interno ainda aquecido, apesar da piora das perspectivas econômicas, continua a incentivar a expansão desse produto atípico da internacionalização da economia brasileira — o produto importado feito no exterior por uma empresa nacional.


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